O Luciano Amaral acha-me demasiado ingénuo ao acreditar na "bondade" da "reembalagem" do Partido Conservador inglês dirigida por David Cameron, no que foi subscrito, na caixa de comentários do post em causa, por dois outros ilustres Insurgentes. Muito bem. As suas dúvidas são, em grande parte, as minhas dúvidas. Mas julgo também que a posição do Luciano (e de tantas outras pessoas, em Inglaterra e não só) resulta de alguns erros de perspectiva e de muita desinformação provocada pelo tratamento simplista que lemos nos media.
Antes de mais, criticar Cameron e companhia por tentarem substituir a ideia do "nasty party" pela do "sweety party" parece-me gratuita e redonda. O primado de Margaret Thatcher, tendo sido impressionantemente útil à Grã-Bretanha, só o foi por causa de uma opção inevitável de confronto com muitas estruturas retrógradas e corporativas (os todo-poderosos sindicatos e quejandos), o que, em última análise, e após dezoito anos de permanente desgaste, acabou por transformar o Partido Conservador em algo vulgarmente detestado na sociedade britânica, levando-o a um recuo humilhado e ressabiado, e a uma posição substancialmente desligada das mudanças sociais - mais positivas que negativas- que entretanto se verificaram (muito por acção dos governos conservadores). David Cameron, por muito respeito que tenha pela história do partido, tem o dever de lhe devolver o poder de atracção eleitoral e a credibilidade governativa, sem - obviamente - rejeitar os seus princípios e valores de sempre. O velhinho "nasty party" pode satisfazer o feitiço que eu e o Luciano temos pela robustez e rectidão dos anos Thatcher (ver, a propósito,
esta pequena maravilha). Mas não fará muito pelo partido ou pela Inglaterra.
Continuando. Segundo me parece do que é normalmente apontado a David Cameron, são talvez três as principais razões para a urticária do Luciano - e não necessariamente por esta ordem de importância: a nova consciência ambientalista, o alegado descolamento da política externa americana e o também alegado afastamento da herança Thatcher.
Ora, quanto à primeira, a coisa parece, de facto, exagerada, com Cameron a aparecer irritantemente com o zelo próprio dos convertidos. Ainda assim, o que chateia essencialmente é a ânsia de modernidade, de ser fotografado ao lado de um automóvel híbrido ou a ir de bicicleta para o parlamento. Porque, na verdade, a ecologia é e sempre foi um valor conservador, nomeadamente na Inglaterra aristocrática, que sempre viu na defesa da natureza e na salvaguarda da harmonia e beleza do meio envolvente (do coutryside e não só) uma das fundações da sociedade ordeira. Aliás, o principal conselheiro de David Cameron nesta área é Zac Goldsmith, o conhecido aristocrata fundador e director da
Ecologist. O discurso sobre o aquecimento global, ainda que se possa basear em premissas cientificamente duvidosas, não é estritamente um aproveitamento político, mas uma consequência lógica de uma preocupação conservadora clássica.
Relativamente à política externa, o máximo que eu vi e escutei David Cameron dizer foi, em traços gerais, que não é um neo-conservador, que o pós-guerra no Iraque revelou algumas deficiências na preparação do mesmo e que a Grã-Bretanha devia reorientar as prioridades da sua agenda internacional para os países emergentes, nomeadamente a China e a Índia.
E então?
O Partido Conservador é por excelência o partido conservador, anti-voluntarista, e dificilmente qualquer dos seus membros sentirá alguma afinidade com o percurso intelectual dos neo-conservadores, de trotskistas para esquerdistas moderados para conservadores messiânicos.
Para além disso, não me parece que a afirmação sobre o pós-guerra no Iraque seja muito desprovida de sentido. Podemos continuar a defender - como eu defendo - que a intervenção era necessária e até que dificilmente a transição teria outra suavidade. Inegável, no entanto, é que muito pouco do que foi publicamente assegurado que iria ocorrer (por execesso de voluntarismo ou propaganda) ocorreu efectivamente (as eleições, apesar de descredibilizadas pela esquerda mais irresponsável, foram uma óptima execepção). Sabemos que a desgraça de Tony Blair se deve principalmente ao apoio que deu à guerra. E, por interesse eleitoral, é normal que David Cameron se sinta tentado a qualquer tipo de distanciamento. Mas ainda recentemente foi muito claro ao dizer que voltava a votar a favor daquela no referendo interno dos MPs conservadores (está algures na
primeira ou na
segunda parte da entrevista a Jonathan Ross).
Quanto à reorientação da polítca externa, parece-me do maior bom senso e sentido de oportunidade política e histórica. E não altera um milímetro à chamada "relação especial" com os EUA.
Relativamente ao alegado desrespeito pelo passado do partido, tal qual este foi projectado intelectualmente sob a liderança de Margaret Thatcher, a análise mais atenta dos textos e discursos permite contrariar a tese. É certo que no enquadramento dos seus valores se diz, agora, "We believe that there is such a thing as society, but it is not the same thing as the state", o que é uma - porventura desnecessária e ostensiva- resposta ao clássico "There is no such a thing as society" da Tia Maggie. Só que os tempos são outros, completamente novos. Em 1978, com a Inglaterra estatista, estagnada e decadente de Harold Wilson e Jim Callaghan, era urgente um fortíssimo choque de individualismo, de empreendedorismo, de liberalismo económico. O resultado dessas opções, que Blair nunca ousou contrariar, está à vista numa Inglaterra que tem uma força económica com que há vinte ou trinta anos apenas poderia sonhar. Hoje, apesar de haver ainda uma grande dose de intervencionismo desrazoável do estado (o Labour, antigo ou novo, é sempre o Labour), não é nada que seja comparável com o passado que aqui interessa. Por isso é que David Cameron pode dar a importância que dá, no seu discurso, ao aperfeiçoamento dos serviços públicos e ao apoio aos mais necessitados. Uma das grandes vantagens do liberalismo - dado adquirido nos tories de hoje - é a de, ao deixar tendencialmente ao livre-arbítrio e aos talentos de cada um o seu destino e a sua subsistência, libertar recursos para que o estado se preocupe essencialmente com os menos favorecidos, com aqueles que, no progresso da economia, por uma ou outra razão - própria ou alheia - ficam para trás. E, aliás, não foi Cavaco Silva que inventou a participação dos privados no apoio social. Também não foi David Cameron. Mas foi este quem, desde o início do seu mandato, estabeleceu o conceito, mais integrado e profissional, de "social entrepreneurship".
É por este sentido de comunidade e de solidariedade que, de facto, se pode dizer que existe essa coisa da sociedade. Achar que Cameron devia andar por aí com o Hayek debaixo do braço é um fétiche inconsequente.
Em rigor, até, não foi ele que se afastou da tradição e da história do Partido Conservador. Foi, na sua altura, Margaret Thatcher - o que, inclusivamente, afastou muitos conservadores da velha guarda, como Roger Scruton, desiludidos com o fascínio pela economia de mercado e pelo aburguesamento a que aquele fora conduzido. Com o regresso e devida actualização dos valores tradicionais dos conservadores (o ambientalismo, o assistencialismo agora menos estatista, etc.), Cameron fá-los regressar ao velho Tory Party victoriano e aristocrático de Disraeli.
Seria bom que se lesse com atenção
o documento de que falei ontem. Duvido que alguém consiga encontrar, em qualquer partido de qualquer país do mundo, uma declaração de princípios tão bem pensada e escrita, e tão marcadamente inspirada nos valores conservadores(-liberais).
O recém popularizado guru dos liberais portugueses, Pedro Arroja, escreveu, um dia, o seguinte:
«A tradição constitucional americana, com o seu "direito à procura da felicidade", conduz à limitação dos poderes do estado, enquanto a tradição francesa e portuguesa, com o seu "direito à felicidade", conduz ao alargamento progressivo dos poderes do Estado e, no limite, a uma sociedade totalitária».No documento que referi, os novos tories resumem assim os seus valores:
«Our Party seeks to cherrish freedom, advance oportunity and nurture responsability. By trusting people, we help individuals grow stronger; by sharing responsability, we help society grow stronger. We believe that there is such a thing as society, but it is not the same thing as the state.
Our Party stands for a free society and a strong nation state; an opportunity society, not an overpowering state;
a responsible society in which each person and every family, regardless of position or power or wealth, is able to fulfil their potential, to make their own choices, and to find true and lasting happiness»
Descubram as diferenças.
Eu gosto de David Cameron. Como já disse, tenho as minhas dúvidas e hesitações. Mas o contrário é que seria de estranhar. E, na generalidade, acho que Cameron pode bem ter sido a melhor coisa que aconteceu à direta europeia em muitos, muitos anos. Na substância mas também na forma, conforme se pode ver
neste vídeo. É a absoluta demolição, olhos nos olhos, do Chancellor, soon-to-be Prime Minister (é fim-de-semana. Temos tempo. Vejam os oito minutos segundo a segundo, até ao grand finale. Vale mesmo a pena).