Rui Ramos no "Público" de quarta-feira
O Estado Moderador
Nada há que causa tanto horror a este governo ou aos seus porta-vozes oficiais e oficiosos como a acusação de “economicismo”. Daí o afã com que embrulham todos os cortes de prestações e serviços públicos no papel de fantasia da guerra contra o “desperdício”, o “abuso”, o “corporativismo”, ou outros maus hábitos. Tal como os conservadores fizeram na década de 90, a esquerda moderna procura dar uma dimensão moralista à sua política. Notou-se isso no caso das taxas moderadoras do Serviço Nacional de Saúde. Uma ideia iníqua no tempo de Durão Barroso, tornou-se muito boa com José Sócrates. E tornou-se muito boa, conforme explicou o ministro Correia de Campos, porque o objectivo deixou de ser o de aumentar receitas, para passar a ser pedagógico: tratar-se-ia de iluminar os cidadãos, de os levar a “valorizar” o serviço, fazendo-os mais “exigentes ” e “responsáveis”.
Aqueles a quem incomoda esta catequese através das taxas deviam olhar para o que se passa nesse laboratório da esquerda moderna que é a Inglaterra de Tony Blair. Na semana passada, Blair pôs os seus funcionários e conselheiros a trabalhar na ideia de “um novo contrato entre o Estado e os cidadãos, estabelecendo o que os indivíduos devem fazer em troca da prestação de serviços de qualidade pelos hospitais, escolas e polícia”. Em vez de um “contrato unilateral”, baseado na simples prestação de serviços pelo Estado ao cidadão, Blair quer um contrato bilateral, assente em “objectivos explícitos e mutuamente acordados” entre o Estado e o cidadão. O Estado e o utente ou beneficiário tornar-se-iam parceiros num projecto comum, com o objectivo de alterar positivamente os comportamentos dos indivíduos. Por exemplo, uma determinada intervenção cirúrgica dependeria de o paciente se comprometer a mudar os seus hábitos, fazendo dieta ou deixando de fumar. Eis o futuro do sistema moderador: em vez da taxa monetária, o contrato de correcção pessoal.
As reacções foram as mais variadas. Houve quem achasse muito bem o Estado deixar de pagar as consequências de vidas afectadas por vícios e maus hábitos. Houve também quem exigisse que, contra o direito do Estado de racionar os serviços públicos em função do bom comportamento, se reconhecesse o direito dos cidadãos não pagarem impostos quando se sentissem mal servidos. De facto, por detrás desta ideia está o desespero da esquerda moderna. Nos últimos anos, Blair dispôs de condições que mais nenhum governo da Europa teve para despejar dinheiro nos serviços públicos. Expandiram-se as instalações, aumentou o pessoal, e também as suas remunerações. No fim, houve que reconhecer que nada foi suficiente. Por exemplo, as probabilidades de um cancro da próstata ser fatal é de 19% nos EUA, e 57 % na Inglaterra (segundo James Bartholomew em The Welfare State We’re In). Ao mesmo tempo, as sondagens começaram a revelar que a disponibilidade dos ingleses para pagarem mais impostos diminuiu. Basicamente, a esquerda moderna inglesa esbarrou nos limites do Estado social: uma oferta limitada e nem sempre eficiente, perante uma procura ilimitada e sempre exigente.
Blair anda a reflectir no problema há bastante tempo. Num discurso de 2002, explicou que o Estado social inglês foi concebido para garantir um “mínimo” de bem estar a uma população que jamais esperara muito dos serviços públicos. Nas décadas seguintes, porém, o modelo foi confrontado com um novo tipo de gente, que passou a exigir cada vez mais dos serviços públicos, à sombra dos quais descurou prudência e esforço pessoal. Blair não quer renunciar ao Estado social. Pelo contrário. Mas para viabilizar o modelo, concluiu que “a relação entre o Estado e os cidadãos não pode consistir simplesmente em o Estado dar e os cidadãos receberem. Tem de incluir direitos e deveres”. Mas neste modelo, os deveres dos cidadãos traduzem-se fatalmente em direitos do Estado a exigir este ou aquele comportamento aos indivíduos.
Em 1859, na introdução a On Liberty, J.S. Mill sugeriu que o Estado só tinha o direito de reprimir aquelas acções dos indivíduos que afectassem terceiros: “sobre a sua própria pessoa, o seu próprio corpo e espírito, o indivíduo é soberano”. Hoje, porém, com o Estado social, todas as acções individuais acabam por afectar terceiros, na medida em que possam redundar num encargo para os serviços públicos. E nessa medida, a tentativa de viabilizar o Estado social abre a porta para um novo paternalismo agressivo do poder público. Para prevenir prejuízos, o Estado pode reclamar o direito de controle ou repressão sobre os comportamentos de risco, a nível da dieta ou da sexualidade. A escolha é óbvia: ou nós moderamos o Estado social, ou o Estado social nos modera a nós.
Rui Ramos
Paulo Pinto Mascarenhas
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23:55
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