Novamente, um dos grandes filmes do ano foi uma reposição. Depois de Aurora em 2005, O Leopardo em 2006.
Um filme não tem de ser (não deve ser) uma aula de História. Mas pode ser uma brilhante metáfora histórica [...] Luchino Visconti filma a emergência da Nação e o declínio da Aristocracia em meados do século XIX. [...]
[...] Esta lenta decomposição é revelada através de pormenores. Exemplos: pó e suor. O pó de um pequeno mundo feito de memória: a vila de Donnafugata (na cena da igreja, o “travelling”, desenhado sobre o pó que cobre os rostos da família aristocrata, é memorável). O mundo de Don Fabrizio é um mundo de pó. Literal e metaforicamente falando. Um mundo espaçoso, mas velho e vazio (repare-se no Palácio cheio de divisões abandonadas). No baile final, o suor percorre a face das personagens. Onde antes havia pó, encontramos suor. Mas a sensação transmitida é a mesma: o desconforto da aristocracia perante um novo mundo, um mundo que não entende, que não quer entender.
Mas, claro, o fim agónico da aristocracia tem no Leopardo, Fabrizio, a sua representação máxima. Este Príncipe siciliano é um homem preso entre dois mundos, melhor, entre dois tempos. O seu tempo está perdido. Irremediavelmente. Por outro lado, o novo tempo é uma entidade estranha aos seus olhos. E o que torna esta personagem num clássico é a sua dimensão trágica. Porquê trágica? Porque não é uma folha inerte ao sabor dos ventos históricos. Fabrizio tem consciência de que está perdido entre duas moradas históricas. E essa auto-consciência confere-lhe a tal dimensão trágica.
[...] Numa cena simples mas desarmante, Fabrizio, algures no baile e olhando-se ao espelho, deixa cair uma lágrima. Vemos uma lágrima a desbravar caminho no rosto galante do aristocrata. Naquela lágrima, esvai-se não apenas o Poder mas, acima de tudo, um certo modo de viver. Fabrizio sabe que o seu modo de vida não se adequa aos novos tempos. O seu tempo não é o tempo da máquina, da técnica, da modernidade. O tempo aristocrático é pausado pelo relógio de Deus (daí a presença constante do Padre) e não ritmado pelo tempo público, pelo relógio dos homens.
Mais: Fabrizio sabe que o seu tempo está perdido na História, mas, apesar disso, quer continuar nesse tempo. Este desejo pelo impossível reforça a sua dimensão trágica. Fabrizio simboliza, porventura como nenhuma outra personagem, o encanto trágico do reaccionário: o desejo de viver num tempo que mais ninguém vê ou sente; quer viver numa Sicília eterna e onírica, situada acima da História real (recusa o Senado e a ideia de Progresso veiculada pelo tecnocrata de Turim).
Esta tragédia interior do reaccionário é, em tudo, similar à dimensão trágica do revolucionário. Se o reaccionário vive num tempo já morto, o revolucionário vive num tempo que nunca chegará. Reaccionário e Revolucionário: os dois seres trágicos da modernidade política. [...] Não por acaso, Visconti conheceu por dentro as duas tragédias: nasceu aristocrata (Conde de Modrone; descendente directo dos Sforza), mas transformou-se num homem de esquerda. Só um esquerdista trágico do século XX poderia filmar tão bem a tragédia de um reaccionário do século XIX.
Edit de um texto publicado no início do ano aqui na Atlântico.